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A experiência da Engenharia Clínica no Brasil

Se analisarmos o que vem ocorrendo com a Engenharia Clínica no Brasil e o seu progresso nesses últimos 14 anos, pode-se concluir que muita coisa foi conseguida, sendo o reconhecimento da profissão, embora ainda não oficialmente, uma das mais importantes conquistas.

O entendimento sobre as atividades que o engenheiro clínico desenvolve, por parte de diversos administradores hospitalares, já ultrapassou o conceito de ser ele "o cara que faz manutenção corretiva". Em muitos casos, além de todas as atividades inerentes à profissão, os engenheiros clínicos também participam de projetos de implantação de sistemas de qualidade para toda a unidade de saúde e não somente naquilo que se refere a equipamentos.

Por um outro lado, fica o questionamento: se a Engenharia Clínica é hoje tão importante para a qualidade da prestação de serviços aos pacientes, se é tão importante para a utilização de equipamentos médico-hospitalares de forma confiável, se pode produzir uma significativa economia nas despesas com a manutenção do parque de equipamentos, e se é tão importante para a tão falada segurança do paciente, por que ainda não emplacou de forma decisiva? Porque ainda é apenas uma necessidade (não obrigatoriedade) para a maioria dos hospitais de médio e grande porte no Brasil? Por que ainda somente os hospitais de grande porte e privados é que exploram a total potencialidade desses profissionais?

Talvez essa baixa aceitação da Engenharia Clínica por parte das unidades de saúde pudesse ser parcialmente justificada pelo fato de nenhum acidente de grande impacto ter ocorrido no país que justificasse um maior impulso dessa profissão. Posso citar como exemplo disso a Física Médica, que lutava a mesma batalha dos engenheiros clínicos por um lugar no mercado. Ocorre que o acidente com o Césio na cidade de Goiânia, acordou a sociedade sobre os perigos que envolvem a falta de controle de equipamentos que emitem radiação ionizante.

Após esse incidente, legislações foram criadas para que o físico médico assumisse a responsabilidade sobre esses equipamentos e obrigando a que todos os equipamentos com essa característica tivessem um técnico responsável pelo controle da segurança em sua utilização. Esse mesmo nível de exigência ainda não foi atingido com relação a equipamentos de suporte à vida ou de terapia. Se mal utilizados ou calibrados, podem representar tanto risco quanto aqueles que emitem radiação ionizante. Infelizmente, as ocorrências que já lesaram milhares de pessoas ainda não significaram um fato marcante para que a imprensa alertasse a sociedade sobre essa questão e, como conseqüência, o nível de exigência pela qualidade e pela segurança dos pacientes ainda não provoca ações mais enérgicas do governo.

Vejamos então um pouco da história da Engenharia Clínica para podermos entender um pouco melhor as causas desse sucesso parcial e o que vem ocorrendo atualmente nessa área de trabalho.

Quando o curso foi criado como uma especialização para engenheiros (a princípio engenheiros elétricos) no início da década de noventa, os problemas relativos a equipamentos médico-hospitalares eram bem mais simples que os atuais. Naquela época, a pressão da sociedade, principalmente do sistema de saúde publica, estava muito focalizada em questões como o alto custo de aquisição dos equipamentos, com a segurança elétrica, com a falta de profissionais que entendessem o princípio básico de funcionamento dos equipamentos e um pouco de manutenção e seu gerenciamento na área hospitalar.

Conseqüentemente, todo o desenvolvimento das disciplinas que comporiam um curso para a formação desse profissional foi dirigido nesse sentido. Tendo sido membro do grupo de médicos e engenheiros que idealizaram o perfil desse profissional, promovi diversas discussões com os membros da área de saúde que insistiam em que disciplinas da área médica deveriam ter aproximadamente 30% da carga didática total do curso. Meu ponto de vista era que a carga de conhecimento técnico e gerencial deveria ser muito mais que 70%.

De um certo modo, como a Engenharia Clínica ainda era desconhecida no país, era necessário que adaptássemos um modelo que mais se adequasse às necessidades do país. No caso, o modelo americano trazido e implantado no Centro de Engenharia Biomédica da UNICAMP pelo Professor Wang Binseng era o que mais atendia às necessidades da época.

O importante de todo esse processo foi o sucesso do projeto e as quatro unidades de ensino que se candidataram ao financiamento do Ministério da Saúde iniciaram o processo de implantação do curso de especialização para a formação desse profissional. A dificuldade maior enfrentada nesse período foi fazer com que principalmente os dirigentes hospitalares reconhecessem essa nova profissão e entendessem a função desse profissional. O grande problema foi que esses dirigentes tinham grande expectativa em resolver seus problemas de manutenção, por mais que insistíssemos que a Engenharia Clínica não era somente isso. Infelizmente, foi somente essa parte da mensagem que eles ouviram ou quiseram ouvir.

Para que o conteúdo das disciplinas que fariam parte do curso fosse compatível com o perfil que pretendíamos para o profissional, ele deveria conter as seguintes habilidades:

Planejamento de instalações e gerenciamento de projeto
Gerenciamento de tecnologias
Controle de qualidade
Educação e treinamento                                  
Auxilio na aquisição
Manutenção e seu gerenciamento

Se verificarmos o que ocorreu do ano de 1992 até 2000, somente partes desses conhecimentos foram utilizados pelos profissionais que atuavam em hospitais. Atividades como controle de qualidade, educação e treinamento e auxílio na aquisição, de um modo geral, ficaram deixados em segundo plano.

A partir de 2000 entretanto, alguns paradigmas começam a ser alterados na área da saúde. A Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) começa a dar um maior incentivo a qualidade na área de saúde e ativa o programa de hospitais sentinelas que vêm apresentando resultados bastante positivos em relação à qualidade de equipamentos e procedimentos na área hospitalar. Além disso, recrudesceu a exigência, já existente desde 1996, pela obrigatoriedade de certificação dos equipamentos médico-hospitalares comercializados no Brasil.

A competição entre os hospitais aumentou com a ampliação dos convênios de saúde, sendo também ampliadas as opções para escolha do hospital onde o paciente queria ser tratado, demonstrando que o nível de exigência do cliente aumentou. Isso provocou uma maior busca pela qualidade de atendimento ao cliente pelos hospitais privados.

Um outro ponto no sentido de buscar melhor qualidade foi o aumento significativode ações contra o erro médico. Embora sejam raras as fontes de pesquisa nesse sentido, uma reportagem da revista Veja de 6 de março de 2002 declara que o "Conselho Federal de Medicina registrou um crescimento de 35% no número de processos por imperícia, sendo a área médica aquela com a maior proporção de reclamações no ano de 2001, de cada 1000 profissionais, dezoito foram denunciados". Em muitos casos, esses processos envolveram diretamente os hospitais que em resposta, vêm procurando melhorar a qualidade de atendimento e a confiabilidade dos equipamentos utilizados nos procedimentos médicos.

Na área pública, embora a competição não seja um fator a ser levado em consideração, também foram iniciadas ações para o processo de acreditação hospitalar, o que demandou o aumento dos procedimentos de qualidade e, conseqüentemente, a criação de grupos de Engenharia Clínica para a melhoria do gerenciamento dos equipamentos médico hospitalares. Além disso, a redução de recursos financeiros provocou o enxugamento das despesas nos vários serviços clínicos, laboratoriais e técnicos.

A abertura do mercado nacional para importações provocou, de maneira lenta mas constante, o aumento de ofertas de equipamentos médico-hospitalares resultando em maior diversidade de opções e, conseqüentemente, maiores dúvidas no processo de seleção para aquisição por parte dos administradores hospitalares. Isso vem produzindo uma maior demanda por profissionais que conheçam os procedimentos de avaliação tecnológica, tanto para a seleção entre as ofertas de mercado, como para incorporação da tecnologia de acordo com as características da unidade de saúde.

Vários outros movimentos foram iniciados ou tiveram maior incentivo na área de saúde, tendo em vista o recrudescimento das ações para maior conformidade com normas e portarias relativas aos equipamentos médico-hospitalares, melhor capacitação dos recursos humanos, criação de procedimentos para gerenciamento de riscos nos hospitais, ampliação de procedimentos para monitoração e tratamento de pacientes fora do ambiente hospitalar (Homecare), ampliação da utilização de tecnologias digitais para o funcionamento dos equipamentos, ampliação das tecnologias para transmissão de dados através de telefonia sem fio e, principalmente, maior preocupação com a qualidade do investimento em tecnologias na saúde, assim como com a qualidade do retorno desse investimento.

Embora tendo seu perfil desenvolvido para atuar em hospitais, os engenheiros clínicos vêm sendo cada vez mais solicitados pelas indústrias fornecedoras de equipamentos médico-hospitalares para desenvolvimento e suporte técnico. Também em órgãos governamentais a solicitação desse profissional vem aumentando gradativamente, sendo ele destinado ao gerenciamento de processos que envolvem a seleção, aquisição, distribuição e instalação de equipamentos médico-hospitalares. A iniciativa de grandes empresas para a formação de grupos de Engenharia Clínica para prestação de serviços em hospitais abriu um novo mercado e, como conseqüência, ampliando a procura por profissionais com conhecimento em Engenharia Clínica para gerenciar esses grupos.

Assim, se no início da década de 90 um dos problemas da área de saúde era a falta de profissionais para o gerenciamento de equipamentos médico-hospitalares, atualmente um dos problemas é a dinâmica com que esse mercado vem exigindo novos conhecimentos desses profissionais. Isso fica visível se verificarmos que até o início da década de 90, era impensável a existência de profissionais não médicos para dirigirem hospitais. Em meados dessa mesma década tivemos um economista como ministro da saúde e alguns hospitais de grande porte com engenheiros na sua administração.

Posso afirmar que no período de 2000 a 2003 a Engenharia Clínica se encontrou no que podemos de um ponto estratégico de inflexão para a Engenharia Clínica. De acordo com Andrew Grove (presidente e co-fundador  da Intel), esse é um período em que forças extremas alteram para sempre o cenário de uma industria, criando oportunidades e desafios. Nesse caso eu trocaria a palavra "indústria" por "profissão".

O futuro aponta para novos conhecimentos que deverão ser somados aos já adquiridos. O problema entretanto, é como preparar esses profissionais para os novos desafios que o mercado vem impondo. Ao que eram preocupações com o gerenciamento de manutenção no início da década de 90, foram acrescentados conhecimentos como controle de custos, tanto para o gerenciamento da manutenção como para a operação dos equipamentos. Ao que eram atividades de  "controle de qualidade" foram acrescentados: a necessidade de conhecimentos sobre normas técnicas, conceitos de segurança elétrica e confiabilidade dos equipamentos. Para as atividades de "auxílio na aquisição" são atualmente exigidos conhecimentos na área de avaliação tecnológica. Outros conhecimentos também são exigidos como: gerenciamento de riscos, investigação de incidentes em ambientes de saúde, critérios para certificação de equipamentos médico-hospitalares e atividades para acreditação hospitalar.

Uma das causas desse "ponto de inflexão" foi a utilização de engenheiros clínicos, não só por unidades de saúde (o que foi planejado inicialmente), mas por produtores e fornecedores de equipamentos médico-hospitalares, por empresas prestadoras de serviço e por órgãos governamentais nos três escalões (federal, estadual e municipal). Entretanto, as principais causas dessa alteração de cenário foram conseqüência da criação de conceitos econômicos mais modernos para as unidades de saúde, da criação e utilização de novos conceitos tecnológicos para o desenvolvimento e utilização de equipamentos, do crescimento demográfico e cultural, destacando a ampliação da medicina privada de um modo geral, e das novas regulamentações do governo para a área de saúde.

Em resumo, aquele modelo de Engenharia Clínica, trazido e adaptado às nossas necessidades no início da década de 90, não mais atende às demandas da área de saúde e nem de outras áreas (indústria e governo), nos quais os engenheiros clínicos também atuam.

Em recente reunião feita com acadêmicos, engenheiros clínicos, indústriais, prestadores de serviço e pessoal ligado ao governo, ficou bastante claro que o mercado vem exigindo cada vez mais conhecimentos técnicos na área de saúde  e, certamente, o engenheiro clínico é o profissional mais adequado para atender a essas exigências. Muitos desses conhecimentos já são bastante utilizados pelas indústrias de um modo geral, mas sua transferência para aplicação na área de saúde não é simples e várias adaptações e modificações precisam ser feitas.

Com todo esse cenário, além do perfil que foi desenhado originalmente para a Engenharia Clínica, o que poderia ser acrescentado? As conclusões tiradas dessa reunião mostraram que esse "novo engenheiro clínico" teria que:

Conhecer mais sobre tecnologias digitais e telecomunicações
Estar alerta para novos desenvolvimentos em tecnologias, regulamentações e economia
Conhecer programas de qualidade, segurança e gerenciamento de risco
Conhecer  tecnologias de negócios (análise, custo, beneficio, ciclo de vida, retorno de investimentos, etc.)
Planejar para a integração de tecnologias já existentes e as novas
Desenvolver sistemas e infra-estrutura para a aplicação de tecnologias médicas em locais não tradicionais (homecare, escolas, locais públicos, etc.)
Avaliação constante dos serviços e práticas adotadas em seu grupo de Engenharia Clínica
Desenvolver metodologia de transições entre tecnologias existentes e futuros serviços técnicos
Visualizar a Engenharia Clínica dentro da organização - análise da missão da organização
Identificar e ter maior aproximação com os grupos que atuam no processo de desenvolvimento de novas tecnologias
Saber planejar e incorporar programas de educação continuada
Aplicar metodologias de sistemas e processo ao invés de simples análises - gerenciar tecnologias ao invés de equipamentos discretos

Como preparar um profissional com todo esse conhecimento? Isso cabe à academia, mas ainda há muito que deve ser discutido. Para essa preparação, surgem varias questões como:

a) a Engenharia Clínica poderá ser um curso de especialização?
b) se transformada em curso de graduação, haverá um mercado grande o suficiente para absorver os profissionais dessa área?
c) quantas horas seriam necessárias para esse curso?
d) quais seriam as disciplinas para atender a esse perfil?
e) se fosse um curso de graduação e fundamentalmente multidisciplinar, que áreas de conhecimento deveriam participar e como reuniríamos tal variedade de profissionais?

Essa variedade de conhecimento transcende a engenharia biomédica e sabemos que os cursos de engenharia em geral ou de economia, preenchem somente parte dos conhecimentos necessários para essa formação.

Também de acordo com Andrew Grove: "Se quiser ter sucesso no outro lado do ponto de inflexão estratégico é necessária a adoção de ações antes de chegar lá". Ocorre que, com exceção do curso implantado na UNICAMP, infelizmente todas as outras três unidades de ensino desativaram os cursos de especialização criados em 1992. Isso fez com que fosse perdida parte das experiências que poderiam ter sido acumuladas e discutidas entre esses grupos ao longo desses anos.

A partir do ano de 2000, entretanto, cinco unidades de ensino implantaram cursos de Engenharia Clínica (CEFET-Bahia, CEFET-MG, Universidade Federal de Itajubá, Universidade Federal de Santa Catarina e Santa Casa de Porto Alegre). Apesar dos responsáveis por esses cursos serem pessoas com grande conhecimento na área de Engenharia Clínica, os cursos ainda estão no período de amadurecimento e a avaliação do impacto no mercado de trabalho dos profissionais por eles formados somente poderá ser feita daqui a alguns anos. Dessa forma, as possíveis respostas aos questionamentos colocados para a formação desse "novo engenheiro clínico" só serão obtidas também daqui a alguns anos, quando certamente esses coordenadores estarão no mesmo nível de ansiedade que o grupo da UNICAMP se encontra atualmente.

O importante em todo esse processo é que essa necessidade de alteração, assim como o conteúdo desse perfil do engenheiro clínico, já foram percebidos. O mais importante ainda é que o processo de discussão já foi iniciado. Embora as conclusões desse processo e a implantação dessas conclusões ainda levem alguns poucos anos, a percepção da necessidade de mudar já ocorreu e a vontade de fazer essa mudança já existe em toda a comunidade.

* Saide Jorge Calil é professor Doutor do Departamento de Engenharia Biomédica da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação - Centro de Engenharia Biomédica da Universidade Estadual de Campinas

 

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